PECADO E INFERNO
(In: Hill, Christopher. O Mundo de Ponta-Cabeça: As Idéias Radicais durante a Revolução Inglesa de 1640, Cia das Letras, 1987)
O pecado e a transgressão terminaram ... Por isso deveis pôr fim a perversão tão horrível, infernal, impudente e arrogante como essa de julgar o que é pecado e o que não é.
Abiezer Coppe, A Fiery Flying Roll (Folhas de fogo aladas). Parte 1 (1649), p. 7.
1- PECADO E SOCIEDADE
Na maior parte das religiões e dos povos encontramos alguma lenda análoga à do Jardim do Éden, da Arcádia ou da Idade de Ouro. No passado houve um estado de felicidade e inocência, porém ele se perdeu, e hoje a humanidade está à mercê de um fado que não tem como controlar. O homem é fundamentalmente pecador e sua reconciliação com Deus, a despeito dos sacramentos que existam para tanto, jamais poderá completar‑se neste mundo. Devemos esperar a nossa felicidade para depois desta vida. Todas as grandes religiões em seu estado primitivo concebem a outra vida como um reflexo da sociedade deste mundo: um pequeno punhado vive na beatitude, ao passo que a enorme maioria sofre tormentos ‑ embora se possa esperar que depois da morte os interessados troquem de posição. Alguns movimentos heréticos reclamaram a salvação para todos os homens, ou, pelo menos, para todos os que fizessem parte de uma determinada comunidade; essa concepção, porém, jamais logrou aceitação por nenhuma Igreja oficial, pelo menos enquanto esta conservasse sua posição institucional, o que, no caso da Europa, quer dizer até bem depois da Reforma.
Numa sociedade agrária marcada pela desigualdade, na qual se usava uma teologia primitiva e os homens, à mercê da natureza, morriam à míngua se a colheita fosse pior do que se esperava, na qual pestes e guerras faziam a vida incerta, era fácil considerar a fome e as epidemias como castigos divinos infligidos à maldade humana. Enquanto as técnicas não se desenvolveram a um nível que permitisse libertar os homens da natureza, eles estiveram dispostos a aceitar a sua impotência perante um Deus que era tão imprevisível quanto o clima. O pecado, assim como a miséria e a inferioridade social, era hereditário. A magia, enquanto um sistema alternativo que tentava controlar a natureza, ainda desempenhava um papel importante na vida das pessoas comuns e era utilizada pelos sacerdotes que efetuavam o milagre da missa. Era fácil inculcar, em homens tão cônscios de sua impotência e frustração, o sentimento de que eram pecadores. E, por serem pecadores, era fácil desencorajá‑los de qualquer tentativa para remediar a sua situação. Se se confessassem a um padre e pagassem as taxas adequadas, seriam absolvidos e libertos de seus pecados ‑ até a próxima vez.
A Igreja medieval havia desenvolvido um sistema eficaz de controle social, para o que muito contribuiu a útil invenção do purgatório.' Mas ela superou a si mesma na venda das indulgências, ou seja, a remissão das penas aplicáveis ao pecado em troca de dinheiro vivo. Pois essa comercialização da salvação foi considerada abusiva por aqueles que, graças ao controle de tecnologias mais avançadas, e portanto também a um relativo enriquecimento, estavam adquirindo maior confiança em sua capacidade para pensar e agir por conta própria ‑ mercadores e artesãos,
No protestantismo, o senso do pecado foi interiorizado. Descartaram‑se os mediadores sacerdotais entre o homem e Deus, porque cada fiel tinha um sacerdote já na sua própria consciência: a penitência e a absolvição externas foram substituídas pela penitência interna. Isso libertou alguns homens dos terrores do pecado. Os eleitos eram os que sentiam dentro de si o poder de Deus. Deus falava diretamente às suas consciências, sem passar pela mediação de sacerdotes ou sacramentos. A doutrina luterana do sacerdócio de todos os fiéis destruiu a velha moldura hierárquica da Igreja e colocou o homem diretamente na presença de Deus. O protestantismo enfatiza que alguns homens estão predestinados à salvação, outros à danação. Mas será um erro acentuar apenas esse aspecto predestinacionista do protestantismo: a importância deste, do ponto de vista prático da vida em sociedade, reside em ser uma doutrina da liberdade dos eleitos, que pela graça divina são distinguidos em meio à massa da humanidade. Assim como os animais e o conjunto da criação inanimada, também a maior parte dos homens está submetida às forças da natureza e da sociedade ‑à fome, à pestilência, à morte. Mais ainda, é impotente perante essas forças. Essa maioria dos homens está mergulhada no pecado. Somente os eleitos são livres, pois a seus olhos as forças que governam este mundo não podem ser cegas. Os eleitos compreendem os propósitos de Deus e colaboram com eles, e essa convicção de uma intimidade com o governante do universo dá‑Lhes uma tal confiança, uma certeza interna, que pode capacitá‑los a prosperar neste mundo tanto quanto a conquistar o Reino dos Céus.
Não têm eles, é claro, a autoconfiança exagerada e insensível que se chama fatalismo: sempre lhes restam tensões e dúvidas. Apenas Deus conhece os seus eleitos. O que é libertação para um homem pode ser desespero para outro.' Mas essas próprias tensões, em circunstâncias apropriadas, podem gerar uma grande energia moral, uma determinação da pessoa a enfrentar as provações. A teoria da justificação pela fé ajudou os homens a viverem devido à esperança interna que ela lhes dava. É uma teoria relativamente democrática: os eleitos compõem uma aristocracia espiritual que não tem qualquer relação com a aristocracia mundana por nascimento. Essa teoria proporcionou, a uma elite desse terceiro estado carente de privilégios, a coragem, a convicção e a solidariedade necessárias para conquistar liberdade religiosa e política, graças a uma organização rigidamente disciplinada. É óbvio que apenas uma elite poderia ter a posição econômica, a educação, o tempo livre necessários para conseguir dominar essa teologia; apenas uma minoria pode ser livre ‑ apenas uma minoria será eleita. O que reforça a convicção dos eleitos de não se confundirem com o restante do Terceiro Estado, despido de privilégios, assim como com a classe dirigente desprovida de Deus, é a consciência nítida que têm eles de que a sua percepção da graça divina é tudo o que os distingue. É o que os faz humanos, diferenciando‑os dos animais e dos homens que Deus não regenerou. Isso implica, portanto, uma modificação completa dos valores: pois foi por falta de humildade que pecaram Lúcifer e Prometeu. E Tawnev referia‑se especialmente ao calvinismo quando falava no "paradoxo que se situa no centro da ética religiosa ‑ o fato de que somente possuem os nervos e a coragem necessários para virar o mundo de cabeça para baixo aqueles que estão convencidos de que, num plano mais elevado, tudo já foi disposto da melhor forma por um Poder do qual eles não passam de humildes instrumentos".
No período de que tratamos, a experiência espiritual de conversão representava uma ruptura do homem com a sua vida anterior e a possibilidade de aceder a uma nova vida, marcada pela liberdade. Libertava‑se do fardo que portava nos ombros, e adquiria um senso de dignidade e de confiança em si mesmo enquanto indivíduo. Thomas Hooker bem exprimiu isso nas seguintes palavras: "A verdadeira contrição, esta que sentimos quando o coração se parte, introduz uma estranha e súbita alteração no mundo, modifica o preço e o valor das coisas e pessoas mais do que se pode imaginar, vira o mundo de cabeça para baixo, faz as coisas aparecerem tais como são". "Estes julgam não pela aparência externa, como procedem os homens que têm a mente corrupta, porém por sua experiência, que encontraram e sentiram em seus próprios corações."° Essa força que os conversos sentiam também se devia ao fato de se perceberem em união íntima com uma comunidade de pessoas que compartilhavam as mesmas idéias; muitas vezes já se assinalou o espírito "coletivista" que caracterizava o calvinismo em seus primórdios. O mesmo senso de uma comunhão de interesses e crenças inspirou as primeiras congregações separatistas
Esse duplo sentimento de força ‑ graças à autoconfiança individual e à unidade com um coletivo ‑ produziu a notável liberação de energia que tão bem caracteriza o calvinismo e as seitas durante o período que estamos analisando. Os homens sentiam‑se livres: livres do inferno, livres dos pastores, livres do medo às autoridades seculares, livres das forças cegas da natureza, livres, ainda, da magia. Tal liberdade bem podia ser ilusória ‑ o resultado de um processo psicológico de auto‑engano. Ou poderia corresponder a elementos da realidade externa, na medida em que era lógico ser ela sentida por homens que eram independentes do ponto de vista econômico. Porém até mesmo uma liberdade ilusória poderia conferir a um homem força para conquistar autêntica liberdade, assim como a magia mimética ajudava o homem primitivo a fazer crescer o que ele plantava.
Contudo, a conversão em si mesma, o salto de um mundo no qual se tem consciência da necessidade para outro em que a consciência é da liberdade, devia forçosamente ocorrer como algo arbitrário e externo. É tão absurdo querer ascender ao estado de graça quanto desejar subir de classe social. A conversão vinha da intervenção de Deus num universo estático - era o milagre sem o qual o indivíduo não saía da massa inerte dos reprovados, sem o qual era impossível alcançar a liberdade.
O protestantismo, conforme afirmou um observador arguto, conservou o pecado medieval sem o seguro que a Idade Média tinha contra ele: a confissão e a absolvição. Os homens emanciparam-se dos padres, porém não dos terrores do pecado, ou do padre interiorizado em suas consciências.' Apenas personalidades muito fortes, ou de muita sorte, podiam suportar essa provação. Na sua forma pura, tratava-se de uma doutrina mais adequada para as condições de luta em período de crise do que para a vida normal numa sociedade estável. E havia, ainda, o problema do controle social. As doutrinas protestantes insistiam na distinção entre os eleitos e a massa dos homens que Deus não regenerou. A confissão e a absolvição tinham sido abolidas porque os eleitos eram padres de si mesmos; além disso, a mediação dos padres nada poderia fazer de bom pelos que viviam no pecado. Mas então o que iria acontecer a essa maioria de pecadores de que se compunha a sociedade? As conseqüências sociais da Queda viam-se assinaladas com muito vigor.
Enquanto se manteve a unidade da Igreja e do Estado, a Queda do Homem foi um fator essencial na política. Pois, se o indivíduo puder opor a sua consciência ao sacerdote e à Igreja, pelo mesmo padrão ele pode opô-la ao governo que mantém associação tão íntima com a Igreja. Lutem afirmara: os ímpios que ignoram o Evangelho buscam apenas uma liberdade carnal e assim se tornam ainda piores do que eram; por isso não é do Evangelho, é da Lei que eles dependem ... O Evangelho é como uma brisa fresca, suave e refrescante em meio à canícula estival, quer dizer, é conforto e consolo para a angústia da consciência. Mas ... aterrorizar a consciência incumbe à pregação da Lei, com o fim de que possamos saber que pecamos contra as Leis de Deus.
Vemos assim que existem dois padrões distintos para o ensinamento da religião: o Evangelho para os justos, a Lei para os ímpios; e, para o Lutem dos últimos anos, "a multidão" era o mesmo que os ímpios. Esse dualismo era ainda mais necessário porque o protestantismo do século XVI, num certo sentido, constituía um credo revolucionário. "Este é o meu credo, com a proteção de Deus, eu não poderia ter outro credo." Pouco importa que Lutem tenha ou não pronunciado essas palavras - elas bem expressam o espírito que animava os seus atos. Ele e os que compartilhavam das suas convicções prefeririam lutar ou sofrer até a morte a submeter-se à tirania do papa ou a um poder secular papista. Contudo, o protestantismo não era um credo democrático. Proclamou a liberdade cristã - quer dizer, liberdade para os eleitos. E Calvino transformou o dualismo num sistema que, por um lado, revelou-se uma máquina de guerra mais eficaz que a luterana e, por outro, um regime no qual as ordens inferiores se viam submetidas a uma disciplina mais rigorosa. Salomão, segundo Calvino, "exorta os pobres a suportarem pacientemente as dificuldades, pois os que estão descontentes com a sua parte procuram livrar-se de um fardo que foi Deus quem lhes impôs". Esse fardo foi-lhes imposto em conseqüência dos seus pecados. A própria escravidão, dizia o calvinista William Perkins. "é contrária à lei da completa natureza tal como vigia antes da Queda; porém não é contra a lei da natureza corrompida posterior à Queda".9 Os justos, ensinara Calvino, podem recorrer à "ajuda do magistrado para a preservação de seus bens, ou, de zelo pelo interesse público, ... pedir que seja castigado o homem perverso e pestilento, a quem, bem sabem eles, nada poderá corrigir a não ser a morte".
Esses lugares-comuns exprimiam a opinião de todos, exceto a dos protestantes mais radicais. Richard Hooker aceitava-os, assim como os calvinistas." Os presbiterianos ingleses e escoceses anteciparam Hobbes, ensinando que a função do governo civil consiste em conter a depravação que pertence à natureza humana. Henry Parker, aliado dos presbiterianos em política e precursor, no plano teórico, de Hobbes, escreveu em 1642 que "o homem, devido à depravação ocasionada pela Queda de Adão, tornou-se criatura tão selvagem e tão grosseira que a lei de Deus, embora gravada em seu peito, já não bastava para impedi-lo de delinqüir, ou para fazer dele um ser sociável". O seu inimigo, sir Robert Filmer, afirmava que "para supor que exista uma liberdade natural da humanidade seria preciso negar a criação de Adão", e por conseguinte "introduzir o ateísmo"; pois na verdade, alegava Filmer, o poder político existia já antes da Queda do Homem." A maneira de expressar essa idéia podia variar, porém ninguém negava a depravação da multidão até o dia em que esta começou a falar por si mesma, e com isso deixou os proprietários ainda mais convencidos de quanto era necessário reprimi-Ia. A lei protege a propriedade, declarou John Pym em 1641: "Se suprimirdes a lei, todas as coisas decairão em grande confusão e cada homem fará sua própria lei, o que na condição depravada da natureza humana deve necessariamente engendrar terríveis enormidades".
Para o conservador, para o proprietário, o pecado original e a Queda do Homem eram coisa que não podia ser desfeita; seus efeitos sobre a natureza humana eram irreversíveis. Tentar ignorar a condição pecaminosa do homem era o mesmo que desconhecer a realidade dos fatos. O conservador considerava o mal como algo interno, latejando no coração de cada indivíduo - não como um produto externo, de origem social. O pecado era uma característica hereditária, transmitida pelo ato sexual. A idéia de que é justo as gerações expiarem os pecados de seus pais e ancestrais pertence ao mesmo complexo primitivo de idéias que produziu a lei da rixa do sangue e está perfeitamente adaptada a uma sociedade que se fundamenta numa hierarquia de nascimento.
Um quadro mental como esse tornava possível o postulado, a nossos olhos tão estranho, de que os herdeiros estão comprometidos por toda a eternidade pelos contratos que firmaram com os seus mais remotos antepassados - idéia essa formulada pelos primeiros teóricos políticos modernos. Sir John Davis justificava os atos de Deus aos olhos dos homens comparando-os com o fato de que, quando se deserda um filho indigno, também se está castigando a sua posteridade (presumidamente) inocente; citava também como outro paralelo válido os privilégios que uma corporação conquistara no passado e permaneciam em vigor." O pecado hereditário era a necessária contrapartida da monarquia hereditária de direito divino. A salvação não dependia do mérito - doutrina diabólica, essa. Os homens somente deviam sua redenção à virtude e justiça atribuída a Cristo, que descartava todos os demais mediadores. Tais argumentos, porém, tinham dois gumes: os levellers, entre outros, afirmavam que todos os ingleses nascidos livres possuíam um direito de nascença, que haviam herdado de seus ancestrais anglo-saxões, do qual seria injusto privá-los.
Numa sociedade na qual a idéia de contrato adquiria crescente importância, em detrimento da noção de estatuto social, uma tal ênfase na herança - como a que encontramos na teoria política de Filmer - começava a parecer antiquada. Hobbes e Locke utilizaram o contrato social como uma moldura conceitual, porém as suas teses em nada dependem de ter ele algum dia existido enquanto fato histórico. No começo do século XVII, a teologia puritana reagiu às novas circunstâncias sociais elaborando a teologia da aliança (covenant), que foi assim definida por Perkins e seus sucessores: Deus contratou a salvação de seus eleitos com estes mesmos, seguindo todas as formalidades mais legalistas. Disso decorreu um resultado muito curioso. Na teologia da aliança, Adão (e Cristo) tornavam-se figuras representativas, que sintetizavam todos os aspectos da condição humana - tornavam-se, pois, pessoas públicas. Se sofremos não é mais na qualidade de herdeiros de Adão, mas sim porque Adão nos representou. Por outro lado, a virtude atribuída a Cristo não chega a nós completamente de fora - foi conquistada, para nós, por nosso representante." Essas inovações abriam perspectivas mais amplas do que imaginavam os próprios teólogos da aliança; William Erbery assim não tardaria a sugerir que o Exército de Novo Tipo era O Exército de Deus, lutando como uma pessoa pública e não em defesa de algum interesse particular".
Na Inglaterra dos Tudor, o problema de como efetuar o controle social foi resolvido pelo expediente de manter os tribunais eclesiásticos encarregados da punição do "pecado". Os protestantes radicais, porém, denunciavam-nos como meros instrumentos para a arrecadação de multas. No interior do clero a ala presbiteriana almejava simplesmente extingui-los, substituindo-os por um sistema disciplinar que daria poder bem maior aos presbitérios. Mas a derrota do movimento presbiteriano no seio da Igreja Anglicana, durante a década de 1590, causou novos problemas. O clero puritano aumentou a ênfase na predicação, na conduta moral, na formação de um corpo de leigos com sólida formação doutrinária. A medida que crescia a influência arminiana nos governos Stuart, os puritanos passavam a considerar mais e mais importante a consolidação de um forte partido seu junto aos leigos. A medida que a Igreja retornava a uma liturgia centrada nos sacramentos, iam os puritanos adquirindo o apoio de muitos leigos que se juntavam a eles por serem anticlericais, mais do que por motivos propriamente teológicos; pois esses leigos, nos anos 1640, vieram a sentir o clericalismo presbiteriano como tão detestável quanto o arminiana. A prazo mais curto, porém, a aliança teve sua solidez.
É claro que havia uma contradição inerente ao fato de se combinar uma teologia que enfatizava estar a salvação reservada a uma minoria, com uma pregação moral destinada a atingir todos os homens. Todos os ortodoxos concordariam com o que disse William Crashaw: "A parte maior é geralmente a pior". 19 Em 1632 Thomas Hooker podia "dizer, por experiência, que é inacreditável a ignorância que encontramos junto à gente mais mesquinha". Esse problema Perkins e outros teólogos puritanos resolveram, ensinando que Deus aceitaria a intenção em lugar do ato: embora nossos esforços jamais sejam suficientes para nos salvar, pode-se entender que um desejo fervoroso de ser salvo constitua um fortíssimo indício de que o indivíduo em questão conta entre os eleitos. "O Senhor aceita que a afeição e o esforço valham pela coisa realizada. ”Quem deseja ser justo é justo", afirmou John Downame; "quem quer arrepender-se é porque já se arrepende ... Um espírito de boa vontade será aceito". Em 1641, sir Simonds D'Ewes afirmava que "o desejo de ter a certeza da salvação e o receio de não a ter" constituem a prova de que "a salvação é certa. Ou seja: quem quer que considerasse a sério o problema de sua salvação teria razões para confiar em que estaria salvo. A elite eram os eleitos.
Quando começou a guerra civil, o apelo às massas teve de se tornar ainda mais direto, ainda menos discriminatório. Eram bem-vindos todos que se dispusessem a lutar contra o Anticristo. Não sabemos até que ponto os pregadores se permitiram ter consciência da profunda contradição em que assim se envolviam. Muitos deles convocaram a gente comum do povo a intervir na ação política, difundindo expectativas militaristas, especialmente entre os mais pobres e simples. Contudo, do ponto de vista lógico, nenhum calvinista poderia ter confiança alguma na democracia: sua religião destinava-se aos eleitos, por definição minoritários. Thomas Goodwin, embora fosse um dos que apelaram "à multidão vulgar", sabia apesar disso que constituía "um sinal irrefutável de pertencer à condição dos não-regenerados deixar-se arrastar pela torrente e moldar pelos mesmos princípios que a grande maioria dos homens". Apelar às massas ímpias para combater o Anticristo talvez não fosse mais ilógico do que apelar, para a reforma da Igreja, a um duque de Northumberland ou de Buckingham, a um conde de Leicester ou de Essex.
Mas era mais perigoso. Tudo dependeria de o clero conseguir manter o controle da situação - vale dizer, de conservar o apoio daqueles segmentos da população leiga cuja influência contava na política. Ora, se já tinham dificuldades em bom número com os erastianos membros do Longo Parlamento, com a ascensão do Exército de Novo Tipo viriam a perder por completo o controle do poder.
Enquanto o campo de discussão esteve delimitado por uma Igreja estatal que funcionava, um sistema de clientela e uma censura que também eram eficazes, o clero e seus aliados parlamentares nada tiveram a temer. Porém, assim que esses protetores faliram, assim que o povo comum provou das delícias proibidas da liberdade, o que iria acontecer? Certamente o povo não aceitaria de bom grado a instauração de um sistema disciplinar rigoroso, aplicando um código moral severo - não aceitaria trocar os açoites episcopais pelas varas espinhosas presbiterianas. Os tribunais eclesiásticos, nos anos que precederam 1640, exasperavam o povo, mas isso era temperado por sua ineficiência e relaxamento. Quem era pobre demais para valer a pena ser multado normalmente escapava do seu jugo. Mas a disciplina presbiteriana era coisa nova e diferente: levar-se-ia a sério a imposição, à multidão ímpia, de um código de conduta moral. Essa perspectiva deve não apenas ter reforçado o anticlericalismo em meio às classes inferiores, como também ter estimulado os antinomistas na sua disposição de recusar a servidão da lei moral, que os ranters iriam radicalizar a ponto de rejeitar todas as restrições morais tradicionais." Os ministros presbiterianos, por seu lado, certamente levariam a coragem de suas convicções até a perseguição, da mesma forma que a maioria dos membros do Longo Parlamento, ou melhor, de qualquer Câmara dos Comuns eleita com base num sufrágio censitário, seja em 1640, 1654, 1656, 1660 ou 1661. Mas, a partir de 1647, foi em mãos do Exército e não do Parlamento, menos ainda do clero presbiteriano, que esteve o poder decisório.
Os protestantes radicais haviam esperado muito tempo para completar a Reforma que, consideravam eles, se detivera a meio caminho devido ao compromisso adotado no reinado de Isabel. Queriam suprimir os tribunais eclesiásticos e todos os vestígios da vigilância exercida pelo clero. O pecado deixaria de ser controlado por qualquer tribunal, fosse este temporal ou espiritual; passaria a ser problema íntimo de cada fiel. Na medida em que devesse continuar a haver alguma forma de controle social, este seria 'exercido sobre seus próprios membros democraticamente, por congregações de "eleitos" que se formariam de modo espontâneo. As penalidades infligidas, aliás, seriam puramente espirituais; o magistrado civil se encarregaria de conservar os ímpios dentro da ordem.
Mas é claro que as coisas não poderiam parar por aí, como a história do século XVI deveria haveria mostrado aos radicais que pertenciam ao clero. O protestantismo começou sob as feições de uma grande empresa de libertação do espírito humano. Contudo, menos de uma década depois de Lutero formular o seu protesto, deparou-se ele com uma revolta camponesa que contestava a propriedade e a submissão social, tais como Lutero as prezava, em seus próprios fundamentos; e na década seguinte os anabatistas de Münster se rebelaram contra toda a ordem social existente. A imprensa tornara possível o protestantismo porque facilitara a rápida difusão da teologia popular entre os alfabetizados, especialmente no meio urbano. Enquanto a Bíblia dos lolardos circulara em apenas algumas dezenas de cópias, o Novo Testamento de Tyndale foi difundido às centenas, e a Bíblia de Genebra aos milhares. Porém a imprensa também arruinou qualquer pretensão do protestantismo a constituir um credo homogêneo, porque a leitura de livros é bem mais difícil de se controlar do que a de manuscritos. Graças ao seu formato de bolso, a Bíblia de Genebra podia ser assimilada e interpretada individualmente. E, desde que as massas se viram chamadas à atividade política, quer isso acontecesse na Alemanha do século XVI ou na Inglaterra do XVII, era inevitável que alguns, pelo menos, exigissem o direito de alcançar a sua salvação pessoal. Os anabatistas alemães e holandeses fracassaram em seu intento de tomar o paraíso de assalto. Uma severa repressão devolveu-os à submissão, neste mundo e no outro. Além disso a sua aparição no cenário público constituiu, aos olhos de Lutero e de Calvino, prova suplementar da intrínseca impiedade da massa humana, devida à Queda. Lutero, que se tornara dependente dos príncipes temporais alemães, reagiu negando à consciência individual qualquer direito de criticar ou intervir na esfera do governo secular; Calvino, que tinha em mãos o governo de Genebra, enfatizou o quanto era necessário haver uma disciplina, um rígido código de conduta imposto de cima para baixo.
Quando, depois de se libertarem do controle eclesiástico tradicional, as pessoas comuns formaram suas próprias congregações no correr dos anos 1640, passaram elas a discutir à luz da Bíblia todos os aspectos da teologia e da política. Muitos proclamavam, como Milton, que os eleitos deveriam estar livres de tudo o que fosse restrição - até mesmo dos laços matrimoniais: deveriam sofrer coerção somente os que Deus não regenerou. Dessa forma o número e a identidade dos eleitos converteram-se numa questão política candente. Durante os debates travados em Putney sobre o direito de voto, esse ponto tinha relevância política imediata. Na medida em que os sectários saídos das classes inferiores foram se convencendo de que eram eles os eleitos, o antinomismo, alter ego do calvinismo das classes baixas, voltou a aparecer
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