domingo, 30 de novembro de 2008

Ode a Inteligência

JOSÉ SARAMAGO
A humanidade não merece a vida
Prêmio Nobel português se define como um "comunista hormonal" e afirma que os instintos servem melhor aos animais do que a razão aos homens

O ESCRITOR português José Saramago, 86, disse ontem que "a história da humanidade é um desastre" e que "nós não merecemos a vida". O autor, vencedor do Nobel de Literatura em 1998, participou de sabatina da Folha em celebração dos 50 anos da Ilustrada. O debate, assistido por 300 pessoas em um Teatro Folha lotado, teve como mediador o secretário de Redação do jornal Vaguinaldo Marinheiro. Participaram também, como entrevistadores, o crítico Luiz Costa Lima, a repórter da Ilustrada Sylvia Colombo e Manuel da Costa Pinto, colunista do caderno.

DA REPORTAGEM LOCAL
HUMANIDADE
A história da humanidade é um desastre contínuo. Nunca houve nada que se parecesse com um momento de paz. Se ainda fosse só a guerra, em que as pessoas se enfrentam ou são obrigadas a se enfrentar... Mas não é só isso. Esta raiva que no fundo há em mim, uma espécie de raiva às vezes incontida, é porque nós não merecemos a vida. Não a merecemos. Não se percebeu ainda que o instinto serve melhor aos animais do que a razão serve ao homem. O animal, para se alimentar, tem que matar o outro animal. Mas nós não, nós matamos por prazer, por gosto. Se fizermos um cálculo de quantos delinqüentes vivem no mundo, deve ser um número fabuloso. Vivemos na violência. Não usamos a razão para defender a vida; usamos a razão para destruí-la de todas as maneiras -no plano privado e no plano público.
MARXISMO HORMONAL
Desde muito novo orientei-me para a consciência de que o mundo está errado. Não importa aqui qual foi o grau da minha militância todos esses anos. O que importa é que o mundo estava errado, e eu queria fazer coisas para modificá-lo. O espaço ideológico e político em que se esperava encontrar alguma coisa que confirmasse essa idéia era, é claro, a esquerda comunista. Para aí fui e aí estou. Sou aquilo que se pode chamar de comunista hormonal. O que isso quer dizer? Assim como tenho no corpo um hormônio que me faz crescer a barba, há outro que me obriga a ser comunista.
CRISE ATUAL
Marx nunca teve tanta razão quanto agora. O trabalho constrói, e a privação dele é uma espécie de trauma. Vamos ver o que acontece agora com os milhões de pessoas que vão ficar sem emprego. A chamada classe média acabou. Ou melhor: está em processo de desagregação. Falava-se em dois anos [para a recuperação da economia depois da crise financeira]; agora já se fala em três. Veremos se Marx tem ou não razão.
DEUS E BÍBLIA
Por que eu teria de mudar [a concepção de Deus após a doença]? Porque supostamente me salvou a vida? Quem me salvou foram os médicos e a minha mulher. E Deus se esqueceu de Santa Catarina? Não quero ofender ninguém, mas Deus não existe. Salvo na cabeça das pessoas, onde está o diabo, o mal e o bem. Inventamos Deus porque tínhamos medo de morrer, acreditávamos que talvez houvesse uma segunda vida. Inventamos o inferno, o paraíso e o purgatório. Quando a igreja inventou o pecado, inventou um instrumento de controle, não tanto das almas, porque à igreja não importam as almas, mas dos corpos. O sonho da igreja sempre foi nos transformar em eunucos. A Bíblia foi escrita ao longo de 2.000 anos e não é um livro que se possa deixar nas mãos de um inocente. Só tem maus conselhos, assassinatos, incestos...
RELAÇÃO COM PORTUGAL
Espalham por aí idéias sobre minha relação com meu país que não estão corretas. Saímos [Saramago e sua mulher, Pilar] de Lisboa [para a ilha de Lanzarote] em conseqüência de uma atitude do governo, não do país nem da população. Mas do governo, que não permitiu que meu livro ["O Evangelho Segundo Jesus Cristo"] fosse inscrito num prêmio da União Européia. Nunca tive problemas com o meu país, mas com o governo, que depois não foi capaz de pedir desculpas. Nisso, os governos são todos iguais, dificilmente pedem desculpas. Fomos para lá e continuamos pagando impostos em Portugal. Agora temos duas casas. Mudei de bairro, porque o vizinho me incomodava. E o vizinho era o governo português.
ACORDO ORTOGRÁFICO
Em princípio, não me parecia necessário. De toda forma, continuaríamos a nos entender. O que me fez mudar de opinião foi a idéia de que, se o português quer ganhar influência no mundo, tem de adotar uma grafia única. Se Portugal tivesse 140 milhões de habitantes, provavelmente teríamos imposto ao Brasil a nossa grafia. Acontecem que os 140 milhões estão no Brasil, e o Brasil tem mais presença internacional. Perderíamos muito com a idéia de que o português é nosso, nós o tornaríamos uma língua que ninguém fala. Quando acabou o "ph", não consta que tenha havido uma revolução.
LITERATURA BRASILEIRA
Houve um tempo em que os autores brasileiros estavam presentes em Portugal, e em alguns casos podíamos dizer que conhecíamos tão bem a literatura brasileira quanto a portuguesa. Graciliano Ramos, Jorge Amado, os poetas, como João Cabral [de Melo Neto], Manuel Bandeira, essa gente era lida com paixão. Para nós, aquilo representava a voz do Brasil. Agora, que eu saiba, não há nenhum escritor brasileiro que seja lido com paixão em Portugal. Culpo a mim, talvez, por não ter a curiosidade. Mas também não temos a obrigação de descobrir aquilo que nem sabemos se existe.
LEITOR
O leitor me importa só depois que escrevi. Enquanto escrevo, não importa, porque não se escreve para um leitor específico. Há dois tempos, o tempo em que o autor não tinha leitores e o tempo em que tem. Mas a responsabilidade é igual, é com o trabalho que se faz. Agora, eu penso nos leitores quando recebo cartas extraordinárias. É um fenômeno recente. Ninguém escreveu a Camões, mas hoje há essa comunicação, essa ansiedade do leitor.







"Em nome de todos os brasileiros, obrigada por existir", disse alto, ao final da sabatina, uma integrante da platéia, enquanto Saramago terminava de falar.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Sobre o Tibet

TENDÊNCIAS/DEBATES

Brumas do Tibete
ALDO PEREIRA

Quem apóia a campanha do dalai-lama deveria, primeiro, perguntar se eventual restauração instituiria direitos humanos no Tibete
O POVO tibetano acredita descender de um macaco criado por Avalokitesvara ("senhor que observa o mundo") e baixado a este plano inferior, onde gerou seis híbridos numa demônia que o seduziu. A nação tibetana reverencia Tenzin Gyatso, 72, como "emanação" (manifestação corpórea) desse macaco primordial. Tal linhagem legitima seu título de dalai-lama, sumo sacerdote e monarca do Tibete. (Dalai, "[profundo e grande como] oceano"; lama, "superior [de mosteiro]".)
Tibetanos alegam razões de religião e identidade nacional como essas para pleitear o retorno do dalai-lama. Mas, tirante o clero, poucos pretendem ver restaurada a ordem social que ele regia.
No século 8, o Tibete anexou ou avassalou várias nações da Ásia Central, inclusive a China, que teve a capital saqueada em 763. Na gangorra da história, o Império Mongol ascendeu e suplantou o tibetano. No século 13, foi a China que impôs ao Tibete e à Mongólia a vassalagem, que ela interpreta como anexação.
Durante os sete séculos seguintes, a China negligenciaria colonizar o remoto Tibete. No século 19, o Império Chinês era baleia ferida e acossada por tubarões. Cedeu metade do território a potências européias, que ainda lhe extorquiram privilégios comerciais no resto do país, e puniram recalcitrâncias com invasão e mais extorsões. A conseqüente desmoralização da monarquia propiciou a revolução republicana de 1911-12.
Pescando nessas águas agitadas, o Tibete declarou independência. A China não reagiu, afligida então, e nas décadas seguintes, por calamidades de fome e uma enxurrada de sangue: rebeliões e guerra civil entre comunistas e nacionalistas. Os dois blocos se aliaram em 1937-45 para repelir a invasão japonesa, mas depois voltaram a guerrear entre si até 1949, quando os comunistas assumiram o controle do território continental.
Em 1951, o exército chinês ocupou o Tibete, e quadros comunistas assumiram a administração. Na teocracia deposta, sacerdotes e nobres possuíam todas as terras e demais meios de produção. Camponeses, nômades, pequenos comerciantes e mendigos formavam minoria relativamente livre da plebe. Desta, uns 90% eram servos; outros 5%, escravos.
O amo sustentava o escravo, que prestava serviços domésticos e não produzia, mas não o servo. Ambos passavam sua condição aos filhos. A lei sancionava mutilações e outras torturas. Deficiências de higiene e nutrição matavam quase metade dos bebês no primeiro ano de vida. Não havia escola pública. A taxa de analfabetismo chegava a 90%.
Em lugar de partidos, disputavam então o poder diferentes seitas budistas. Como o celibato o priva de herdeiro, a morte de um dalai-lama enseja processo sucessório que consiste em reconhecer "emanação" (reencarnação) do morto em algum menino tibetano. Lamas de alta hierarquia promovem a busca segundo oráculos, visões e pistas crípticas legadas pelo antecessor.
Em troca de autonomia, o dalai-lama reconheceu a soberania chinesa em 1951. Mas, no contexto da Guerra Fria, a Agência Central de Inteligência do governo americano (CIA) passou a prover insurretos tibetanos de treinamento e armas.
Em 1959, o Exército chinês reprimiu uma rebelião com brutal eficiência. O dalai-lama, que deixara a capital pouco antes, fugiu para a Índia. A organização dos tibetanos que o acompanharam admitiria depois que, na década de 1960, recebia da CIA estipêndio anual de 1,7 milhão de dólares ("New York Times", 2/10/1998).
O dalai-lama não reivindica independência para o Tibete, apenas autonomia (leia: restauração dos privilégios). Enquanto isso, o governo central coloniza a região mediante imigração favorecida de chineses das etnias han (dominante na China) e hui (minoria muçulmana). Nos distúrbios de março, tibetanos hostis aos imigrantes incendiaram lojas e outras propriedades desses "estrangeiros".
Quem apóia a campanha do dalai-lama deveria, primeiro, perguntar se eventual restauração instituiria direitos humanos no Tibete. Segundo, perceber que a estratégia de incitar tibetanos à revolta meramente agrava sua opressão, porque o governo chinês não cederá: é imune a sanções diplomáticas ou econômicas e sabe que o interesse comercial do mundo na China torna quixotesca a proposta de boicote da Olimpíada.
Outras minorias étnicas da China, além da tibetana, concorrem à liberdade na arena política desta Olimpíada. Mas nenhuma delas será livre enquanto a própria China não for.


ALDO PEREIRA , 75, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha.
aldopereira.argumento@uol.com.br

quarta-feira, 26 de março de 2008

Indicação

Boas indicações de trabalhos sobre a História brasileira escrita por jornalista:


Todos do Elio Gáspari.

1808 II

Terminei a leitura do livro 1808 de Laurentino Gomes. Continuo recomendand0 a leitura aos meus alunos que vão enfrentar vestibulares. Ele apresenta um bom apanhado da época, nada com muita profundidade, bem ao nível de uma formação mediana.

Agora o livro é decepcionante, mesmo com as ressalvas feitas pelo autor de que sua praia é o jornalismo. O que esperamos de um jornalista freqüentador da grande imprensa? Que seja dono de um bom cabedal do que chamamos de cultura geral. Nesse sentido, o autor é pobre. Mesmo que seus propósitos não fossem os de descer aos arcabouços da análise historiográfica, uma obra que versa sobre a História poderia ao mínimo sugerir indagações, pontos de vistas, indicações sobre os temas tratados, situações que sugerissem ao leitor até o desejo de maiores vôos ou aprofundamentos. Nesse sentido, o livro é pobre. E, pior, quando o autor se propõe a essa aventura, se revela paupérrimo. Um deles já indiquei no outro comentário: aquele de sugerir a fuga de nossas elites empresariais e políticas após uma invasão argentina sobre nosso território. Há muitos outros, o que, de certo modo, revela que o autor, parece desconhecer o básico da própria história brasileira. Não vou indicá-los aqui. Deixo isso para os leitores potenciais deste livro.

Antes de terminar, entretanto, saliento o clima de tragédia de péssima qualidade que representam os dois últimos capítulos. No penúltimo, o autor tratando de um dos personagens citado várias vezes em seu livro, revela que ele teve um segredo desvendado 200 anos depois por suas pesquisas. Pensei eu: -bem teremos um término ao menos com "chave de ouro". Minha curiosidade aumentou quando na segunda frase do último capítulo intitulado "O Segredo" o autor afirma: "O que vem a seguir interessa especialmente aos historiadores". Feita a leitura do capítulo inteiro posso dizer: interessa sim, aos que enxergam a História como um amontoado de fofocas, pois trata-se de uma suposta comprovação do nascimento de um filho antes do casamento do personagem em questão. Suposta comprovação, porque a fonte que possibilitou ao autor essa conclusão foi uma pesquisa realizada num megasearch mórmon que se propõe a realizar genealogias on-line. Pobre D. João.

domingo, 16 de março de 2008

João Cabral

A Folha de São Paulo está com uma coleção de literatura brasileira nas bancas ao preço de R$14,90. Tudo excelente: encadernação, papel, requinte. Vale a pena o investimento. Estou comprando alguns títulos que ainda não tenho ou que pretendo substituir pelo antigo. Aproveito o tempo de ÓCIO para ler de maneira aleatória alguma coisa. Peguei o João Cabral, Morte e Vida Severina. Perdi a conta de quantas vezes assisti a essa peça, mas não importa permanece sempre atualíssima. Na edição da Folha há também outros poemas maravilhosos. Veja este:

Vi muitos arrabaldes
ao atravessar o Recife:
alguns na beira da água,
outros em deitadas colinas;
muito no alto de cais
com casarões de escadas para o rio;
todos sempre ostentando
sua ulcerada alvenaria;
todos porém no alto
de sua gasta aristocracia;
todos bem orgulhosos,
não digo de sua poesia,
sim, da história doméstica
que estuda descobrir, nestes dias,
como se palitavam
os dentes nesta freguesia.


Brilhante, sutil, irônico... verve de gênio.

sábado, 15 de março de 2008

1808

Estou lendo o livro 1808 do jornalista Laurentino Gomes da Editora Planeta. Trata-se de mais uma obra destinada ao grande público, sem maiores pretensões, assim mesmo recomendo a leitura. O autor foi honesto, na apresentação indica não ter trabalhado com fontes primárias, essencial no trabalho historiográfico. Esclarece que organizou seu texto a partir da leitura de 150 livros sobre o assunto estabelecendo assim uma grande síntese.

O leitor não deve se assustar com o tamanho do livro. São ao todo 351 páginas, mas a fonte utilizada deve ser tamanho 12 ou 14. Além disso, a escrita é fluente e bem encadeada, fato que estimula à atenção até o final.

Pessoalmente achei sofrível a citação que reproduzo a seguir retirada do primeiro capítulo.

Imagine que num dia qualquer, os brasileiros acordassem com a notícia de que o presidente da República havia fugido para a Austrália, sob a proteção de aviões da Força Aérea dos Estado Unidos. Com ele teriam partido, sem aviso prévio, todos os ministros, os integrantes dos tribunais superiores de Justiça, os deputados e senadores e alguns dos maiores líderes empresariais. E mais: a esta altura, tropas da Argentina já estariam marchando sobre Uberlândia, no Triângulo Mineiro, a caminho de Brasília.

Em primeiro lugar, creio que o povo brasileiro se sentiria aliviado com a fuga dos donos do poder para um lugar distante. Eu iria para as ruas comemorar. Em segundo lugar, tropas argentinas invadindo o Brasil... forçou a barra... achei ridículo.